As Horas
As pessoas vivem suas vidas para as outras, na possibilidade de fortalecer quem amam e quem desejam para perto de si. Isso não significa que todos irão se manter nessa cadeia de aceitação julgada “sociedade”, uma enorme fonte de injustiças internas e voltadas a materializar nada mais além do sonho – isso em uma visão pessimista – e amargurarem, nesse caminhar, a contínua melancolia de representar a morte para os outros, quando não para si próprio. Para quê, então, viver para ser suporte dos outros se não podem, esses personagens de As Horas, deixarem os rumos da sonhada “liberdade” se misturar com a morte anunciada? O humanismo dos personagens inclinados à autodestruição é justamente para mostrar suas aptidões pela morte, pelo desejo de dizer o quê, para eles, é a liberdade e se essa pode fazer algo por todos na ausência do sofrimento.
Dirigido por Stephen Daldry, esse filme da boa safra de 2002 coloca a posição das pessoas dispostas a viverem para si próprias como causadoras de algumas futuras desgraças mostradas no duro desfecho. De longe, é um dos filmes mais difíceis de acompanhar daqueles lançados após o ano 2000, e não procura camuflar o sofrimento como forma de razão – antes de tudo, algumas pessoas irão sofrer demais pelas idéias de outras, inspirações de outras e, se a visão maniqueísta não se apoderasse de alguns, a vida poderia se completar isolada de sofrimento. Impossível na vida real e, para servir ao texto, impossível no cinema também. A pessoa livre para doar-se a seus momentos, seus dias, suas horas, é a personagem chave Laura Brown (Julianne Moore), a dona de casa desesperada num dia muito complicado de sua vida: terá, numa questão de ver o sol raiar e se pôr, de decidir sobre seu futuro, despejar na balança de sua consciência se a idéia de deixar a família, ou a vida, vale a pena. É a sua existência ou a de outros, e ela sabe perfeitamente sobre isso. A questão aberta pelo filme, uma poderosa parte para se refletir, fala sobre o egoísmo humano de não doar parte de sua vida pela própria liberdade. Se continuasse como dona de casa, altamente correta para os padrões de sua sociedade e fingindo estrema compaixão, Laura certamente morreria – teria dado cabo de sua vida naquele mesmo dia de 1951, no quarto de um hotel (em sua mente, ou, tratando-se deste filme, na mente de qualquer uma das três mulheres, ela tem seu corpo invadido por uma água suja, semelhante a do rio em que a escritora Virginia Woolf pratica suicídio). O egoísmo (se é que pode ser chamado assim) é uma particularidade até mesmo discreta nesse filme bem construído. Sobre ele, Laura espera encontrar um pouco mais de paz e tranqüilidade, sem ter de olhar para trás e ver as conseqüências de seus atos.
Livre ou não, a perda constrói a vida de outros personagens. Laura está, em 1951, lendo o livro de Woolf, Sra. Dalloway, e a escritora (interpretada por Nicole Kidman), em 1923, tenta se reerguer em meio a sua insanidade para encher de envolvimento – e morte – o livro em sua confecção. Pulando para 2001, a festa para o consagrado poeta Richard (Ed Harris) é motivo de orgulho para sua melhor amiga Clarissa Vaughan (Meryl Streep). Seria desnecessário citar Vaughan como o suporte estratégico para Richard, sua válvula de escape para continuar, ao menos, sentir algo de bom pela vida. O mesmo ocorre na Inglaterra de 23, nas lutas do dedicado marido de Woolf, Leonard (Stephen Dillane), para reforçar o estado inexiste de graça na mulher. No interior desse melancólico canto à morte, pedaços serão justo-posicionados para não darem, a primeira vista, certo frescor vitalício. Felizmente, As Horas transforma-se para bem, e flui num clima de perda desigual. Daldry controla seu elenco de estrelas em sintonia com as diferentes épocas, retirando das mesmas a fragilidade do mundo feminino. Até mesmo Kidman, em elogiada e premiada interpretação, emite um tom de desespero estritamente feminista e aguçado; provoca o marido e as criadas de sua casa apenas com seu silêncio, com gestos de decepção decorrentes de sua vontade de morrer tratada á maneira comum dos tristes escritores – a culpa sempre recai na falta de inspiração. Woolf mostra como pode potencializar sua vontade de entender a morte, vivê-la, comentando com seu interior as maneiras de construir a personagem central de sua obra em formação. Teria, logicamente, de ser um livro sobre morte, mas ela decide salvar a mulher, tornando-a livre do mundo e das obrigações que poderiam matá-la. O paralelo está formado. Um livro, um quarto de hotel e uma vitima em potencial; a água de Woolf é o despertar de Laura, levando a dona de casa a ser, milagrosamente nos rompimentos temporais de espaços e idéias, a personagem de seu livro companheiro.
A proposta é fazer da vida dessas mulheres, e dos homens afetados devido a suas decisões, uma história única, passada em um único dia. Tentam entender o efeito do fim, para perceberem depois ser impossível entrar nessa esfera se não por completo. E, se não podem lançar seu afeto pelo sinal de esperança caso fossem livres, o fazem pelos beijos lésbicos arrancados com extrema vontade. Ainda teria algum efeito sobre suas decisões? Sra. Dalloway é o elo para completar, na vida de Richard, o efeito de ver sua mãe beijando outra mulher – talvez assim, percebendo ainda cedo, a tal necessidade de fuga – e ter de ser perseguido pelo personagem principal dessa obra. Na chegada de Vaughan a seu desarrumado apartamento, ele a chama pelo nome do livro; as influências passam a surtir efeito no público atento; de resto, basta esperar para ver como a paz não tem nada haver com o comprometimento com coisas irreversíveis – só para completar: “Não se pode ter paz evitando a vida, Leonard”, diz Woolf na saída da estação de trem a seu marido, quase prevendo como pode surtir irracional as pessoas decidirem viver para as outras e ainda tentarem corrigir erros passados na forma de pena.
Que fique bem claro: o roteiro de David Hare, baseado no livro de Michael Cunningham, expõe apenas as decisões de certos personagens como uma opção de vida e não como um erro. Ao dedicar parte de sua vida a ajudar seu amigo – que por apenas um verão foi também seu amante –, Vaughan não se torna menos heróica em relação à Laura. A diferença entre ambas está na época onde se situam (um artifício de extrema importância do texto). Enquanto uma pôde se dar ao luxo de engravidar de um homem qualquer apenas para ter uma filha e assumir seu relacionamento homossexual mais tarde (afinal, os tempos são outros), a dona de casa do inicio dos anos 50 não pode fazer nada a não ser consentir com seu destino. Quebra o derradeiro uso de remédios, a morte forçada, expelindo a vontade de apagar o enfado fazendo uso do golpe mortal. Uma passagem de ônibus para o lugar de isolamento se torna saída para continuar vivendo. Nesse descompasso entre épocas e situações, fica a pergunta macabra sobre a relação das três mulheres em tempos diferentes: seria Vaughan mais privilegiada – portanto livre – em relação às outras duas? Enquanto a primeira escolhe pela morte, serve também de salvamento a segunda; a terceira vê a tragédia causada pelas conseqüências do considerado salvamento da segunda, e, se falta ainda alguma coisa (pois são tantas), o ciclo pode estar fechado, para nenhuma surpresa, em melancolia. A trilha sonora de Philip Glass vem para complicar ainda mais a redoma mórbida de As Horas. A música chega antes do drama, correndo pelos simples atos demonstrados nas preliminares da tragédia. Woolf enche os bolsos de pedras e mergulha na tragédia, compromissada consigo mesma. Seu marido, em outro momento do filme, chegou a lhe dizer: “Virginia, você tem obrigação para com sua sanidade”.
The Hours. De Stephen Daldry. Cores. EUA, 2002. (7).
No CINECLUBE CONSCIÊNCIA, Dia 28/06, às 18horas
+ Bate Papo com Sumaya fouad e Joseane Alfer
Nenhum comentário:
Postar um comentário